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A Inteligência artificial e os artifícios da emoção

A Inteligência artificial e os artifícios da emoção


A Inteligência Artificial (IA) está se tornando a “dona da razão”. Ela responde, resolve e elimina ambiguidades. Basta que a gente tenha o acesso e a IA nos iluminará com suas rápidas soluções. 

Quando temos que responder uma demanda no trabalho ou desenvolver uma ideia na escola, ou ainda mesmo quando somos questionados nas mais cotidianas interações sociais, recorremos imediatamente à IA para ter uma resposta assertiva e imediata. 

Como são bem elaboradas as mensagens de e-mail da IA, com suas expressões objetivas e elegantes. Como são detalhadas as explicações com dados e fatos. Como faz bem à autoestima, ter em mãos à resposta de quem escreveu aquele livro ou compôs aquela música, incluindo à data, quando todos se perguntam numa conversa qualquer em mesa de bar.

A IA nos possibilita encantar ouvintes com informação, quantos likes recebidos, elogios do chefe e notas boas na escola. Ora, não seria então, a IA, senhora apenas da razão, mas também uma grande influenciadora da emoção? Essa inteligência nos afeta de uma forma bem mais que artificial. A cada ajuda que pedimos a ela, a cada galho que ela nos quebra, mais a IA vai se tornando uma importante mediadora das nossas interações e, portanto, uma mobilizadora ativa de nossos afetos e uma provocadora de emoções. 

Quando tratamos de IA, é emoção para todo lado! Isso porque nós tanto reagimos emocionalmente aos impactos que ela traz à nossa vida, como também alimentamos os seus algoritmos com nossas emoções que a IA compreende e interpreta. Você já experimentou, depois de um tempo interagindo com uma IA, perguntar se ela te conhece? Sugiro fazer esse teste. Não se surpreenda se na resposta aparecerem palavras que o descrevem como “inteligente”, “curioso”, “interessado”, e você ainda concordar. A IA responde “quem é você” fazendo interpretações não apenas sobre o conteúdo que você pesquisou, mas sobre “como” pesquisou, de que forma você fez as perguntas e assim por diante, interpretando os sinais que você deixou pelo caminho da sua comunicação e revelando às emoções que foram transmitidas durante essa interação. A IA compreende suas emoções, não é fofo? 😊

Mas calma, antes da gente se apaixonar pela nossa IA, que nos dá autoestima e nos compreende, vale trazer para a discussão os estudos de Lisa Feldman Barrett, neurocientista e psicóloga americana conhecida por suas contribuições inovadoras para a compreensão da emoção, do cérebro e da mente. Lisa Barret nos diz que compreender emoções humanas é uma tarefa muito mais complexa do que o simples decodificar de padrões ou sinais. Em sua teoria das emoções construídas, a autora desafia a visão tradicional das emoções como respostas universais e automáticas, argumentando que elas são experiências construídas a partir do contexto cultural, aprendizado e história individual.  Vamos incorporar essa perspectiva à discussão sobre IA para entender melhor tanto suas possibilidades quanto suas limitações.

Seguindo o pensamento de Barret, podemos pensar que todo esse bem-estar que a IA te ajuda a alcançar, seja pela boa performance no trabalho e na escola ou pelo reconhecimento social de suas contribuições inteligentes na roda de amigos, tem um efeito muito efêmero, pois se baseia em produções de ideias que não foram desenvolvidas através da sua história de vida, que não chegaram até você através da cultura que você está imerso e que, portanto, são aprendizados que não se consolidam de maneira efetiva na sua forma de se comunicar com o mundo. De tanto ler belas mensagens de e-mails produzidas por IA, talvez você acrescente uma ou outra nova expressão ao seu vocabulário, em qualquer idioma, mas seria possível a sua forma de se comunicar com os outros realmente melhorar qualitativamente copiando e colando mensagens de uma plataforma de IA para sua caixa de correios? É possível que você aprenda um conceito novo de matéria escolar numa consulta por IA, mas será que através desta pesquisa você está construindo as bases que te possibilitarão compreender melhor a complexidades dos conteúdos avançados que virão pela frente? E sempre que a conversa for estimulante com seus amigos, você vai ter que recorrer à IA para causar boa impressão? Essas questões são possíveis quando pensamos no que Barret nos fala sobre a construção das emoções. O que vai melhorar a nossa comunicação, oral ou escrita, é a prática, porque a prática da comunicação passa por falar e se esforçar para ser compreendido, se cansar de explicar a mesma coisa de formas diferentes, dedicar atenção ao que o outro está dizendo, ficar confuso porque não entendeu e se aborrecer ou ficar feliz se houve ou não concordância entre as partes, ou seja, se comunicar dá trabalho e por isso tem emoção, se comunicar exige esforço e por isso gera aprendizagem, acontece através da história da nossa vida de forma significativa. A gente se chateia por ter que ler um artigo científico mais de uma vez por não ter entendido, mas celebra quando finalmente aquela ideia se integrou a nossa mente. A gente lembra quem escreveu um livro ou quem compôs uma canção, porque um dia, quando estávamos lendo um trecho desse livro ou ouvindo uma frase da canção, uma emoção foi despertada. Copiar e colar respostas da IA não produz a mesma experiência de aprendizagem.

Da mesma forma, essa leitura que a IA faz das nossas emoções quando nos relacionamos com ela, considera as perguntas que fazemos ou o quão educados, por exemplo, parecemos enquanto escrevemos, mas ela não sabe por que somos tão educados, que emoções realmente nos levam a se comportar dessa maneira. IA sabe pouco sobre a gente, a compreensão que tem é apenas superficial. 

Soluções para psicoterapia por IA, aparecem todo dia, com resultados considerados positivos na saúde mental dos pacientes. Será que o algoritmo imita o que Freud explica? Essa é uma discussão para outro artigo, mas foi tentador trazer essa ideia, ainda que de passagem, uma vez que essa interação entre ser humano e IA começou justamente pelo Jogo da Imitação de Alan Turing que, em 1950, fez um algoritmo que imita um ser humano em interação com outro. (Vejam o filme!)

Outra contribuição importante para nossa exploração é de Claude Shannon, um matemático, engenheiro elétrico e cientista da computação americano, considerado o "pai da teoria da informação". Shannon definiu a comunicação eficiente como a redução da incerteza. Esse conceito inspira o uso da IA para decodificar emoções humanas como “sinais complexos”. No entanto, as emoções, como nos disse Barrett, não são mensagens objetivas e claras; elas emergem da interpretação subjetiva do cérebro, o que amplia os desafios de uma abordagem computacional. Aqui está o desafio para a IA: a comunicação humana para ser efetiva, segundo Shannon, não pode ter incertezas, mas, ao mesmo tempo, como fenômeno humano, seguindo as ideias de Barret, a comunicação terá os ruídos da emoção, ou seja, como a IA conseguirá capturar o que dizem os ruídos, o que vacila e se contradiz numa comunicação “demasiadamente humana” ?

Sem a pretensão de resolver essa questão, mas na busca de ampliar a discussão a partir dos reconhecidos “prós” e dos desafiadores “contras” apresentados até aqui, vamos listar algumas oportunidades e limitações desta trama de interações entre a inteligência artificial e os artifícios da emoção:  

Oportunidades:

1- Empatia Artificial: A IA pode ser treinada para reconhecer padrões emocionais em expressões faciais, tom de voz ou palavras, oferecendo respostas mais empáticas.

2- Comunicação Intercultural: Sistemas baseados em IA podem ajudar a traduzir emoções entre diferentes culturas, promovendo inclusão e entendimento.

3- Assistência Personalizada: Aplicativos como assistentes virtuais ou chatbots podem adaptar suas respostas a estados emocionais percebidos, oferecendo suporte mais personalizado.


Limitações

1-Falta de Contexto: Conforme destaca Barrett, emoções humanas dependem do contexto cultural e individual. A IA pode interpretar erroneamente emoções como sarcasmo ou ironia por não conseguir entender o contexto em que a comunicação se dá.

2-Viés nos Dados: A qualidade da resposta da IA depende do treinamento com dados representativos, o que muitas vezes falha ao capturar a diversidade emocional humana.

3-Redução da Complexidade: Tratar emoções como simples sinais computacionais ignora a riqueza subjetiva das experiências emocionais.


A partir destes pontos acima, implicações éticas e sociais surgem como consequências naturais de nossa interação com a IA. Sobre isso, pontuamos alguns riscos e possibilidades para mitigação que podem nos ajudar a explorar melhor este fenômeno.

Riscos

1- Manipulação Emocional: Empresas e governos podem usar IA para manipular emoções, influenciando decisões ou comportamentos.

2- Privacidade: A coleta de dados emocionais levanta questões éticas e legais sobre consentimento e segurança.

3- Desigualdade: Sistemas que não consideram diversidade podem reforçar preconceitos e desigualdades.

Mitigações

1-Incorporação de Diversidade: Dados mais representativos e diversos ajudam a reduzir vieses e garantir respostas mais precisas.

2- Transparência Algorítmica: Tornar os processos de decisão da IA mais acessíveis e compreensíveis aos usuários é fundamental.

3- Regulação Ética: A implementação de diretrizes e políticas específicas pode proteger os direitos dos indivíduos.

Como conclusão, considera-se urgente e relevante a nossa atenção plena, como usuários e desenvolvedores de IA, para como estas tecnologias influenciam nosso jeito de ser, afetam quem somos e definem como seremos no futuro, sem que, no entanto, tenhamos que dispensar os resultados de eficiência que temos da sua utilização no trabalho, na educação e no dia a dia.

Corresponde à governança humana estar sempre alerta para mitigar os riscos associados ao uso da Inteligência Artificial, garantindo que essa poderosa ferramenta seja usada de forma ética, inclusiva e responsável. No entanto, essa vigilância não deve se traduzir em barreiras que desacelerem o avanço tecnológico, mas em um equilíbrio dinâmico que permita à sociedade explorar todo o potencial da IA para melhorar a vida humana.

Ao compreender as emoções como fenômenos complexos e contextuais, e ao implementar regulações inteligentes e transparentes, podemos empurrar as fronteiras da tecnologia sem comprometer os valores fundamentais da humanidade. É nessa convergência de avanço tecnológico e governança ética que reside o verdadeiro potencial de um futuro onde IA e humanidade evoluem juntas.


Autores

Márcio Rocha, profissional de recursos humanos, curioso e interessado no ser humano e sua inserção na cultura contemporânea a partir das tecnologias, expressões artísticas e questões identitárias. 

Benito Beretta, Diretor Geral da Hyper Island Américas. Benito é um palestrante habitual em criatividade e inovação, gestão de mudança e a neurociência do aprendizagem, tendo se apresentado em Cannes, Hacktown, Conagile, além de realizar palestras internas para diversas empresas, compartilhando suas valiosas insights e experiências.

 

 

Referências bibliográficas

Barrett, L.F., 2019. How emotions are made. Providence Book Festival, May25.

Shannon, C.E., 1948. A mathematical theory of communication. The Bell system technical journal.

Souza Leite, P.C.B., 2022. O mal-estar na civilização digital. Editora Blucher.

 

 

Benito Berretta
Benito Berretta

Managing Director of Hyper Island Americas, Speaker & Facilitator

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